quarta-feira, 9 de maio de 2012

Da infância...

A minha infância está intrinsecamente ligada ao Alentejo. Filha única vivia completamente isolada do mundo e só no Verão na casa do meu avô soltava a franga. E de que maneira.
Eu, o meu primo Z. e a irmã dele, a P., foram o que de mais próximo tive de dois irmãos, ou pelo menos era assim que olhava para eles.
Os três éramos inseparáveis nas brincadeiras e muito especialmente nas asneiras. Segundo o meu pai, só tinhamos ideias de gente parva. Ah pois tínhamos e muitas. Éramos garotos, adorávamos andar à solta e o Verão era o tempo em que tudo era permitido.
Ou pelo menos na casa do meu avô tudo era permitido, porque ele achava que "os gaiatos têm que se entreter" e portanto nós aproveitávamos e entretíamo-nos.
Na casa do avô existia uma burra que o meu primo muito simpaticamente batizou de Esquisita, em homenagem a mim.
Sempre tive uma certa fama...
Na verdade não sou esquisita, talvez especial, mas o meu primo referia-se mais especificamente à comida.
Analisando as coisas do ponto de vista de uma pessoa de 45 anos, quase 46, eu diria que o esquisito era ele, que só gostava de batatas fritas, ovos estrelados e salsichas. Já eu só não como feijão frade, caril e chocolate.
Na casa do avô as batatas eram fritas em azeite e o azeite da altura era pesado, verde, grosso, em resumo nojento. As batatas era intragáveis, pelo menos para mim, que ainda por cima sou um bocado alérgica às gorduras ainda hoje.
A minha alcunha veio daí, eu era esquisita porque não gostava de batatas fritas em azeite, mas em contrapartida comia peixe grelhado ou cozido, legumes, sopa, enfim... já o meu primo nem por isso. E não sei se agora come. E já tem 50 anos.
Estão a ver o género?
Voltando à burra... A Esquisita era um animal muito manso, cinzento clarinho, ou pelo menos é assim que me lembro dela. Quando sentíamos o meu avô chegar íamos a correr para fazer o caminho até casa montados na Esquisita.
Era o nosso meio de transporte até à Ribeira de S. João ou à outra de que não me lembro o nome. O meu avô punha-nos lá em cima e lá íamos a balançar para um dia de pesca e de aventura. Perdi o conto às nodoas negras e às esfoladelas que fiz nos canchos (são pedras que nascem do chão e não sei explicar melhor), que estavam escorregadias e que pregaram comigo na água vezes sem conta.
Na caso do avô não havia luz e por isso depois de jantar tínhamos que puxar pela imaginação para passar o serão.
Eu e os meus primos ensaiávamos teatros, concertos... Eu canto tão mal, que até tenho pena dos meus tios que tiveram de me aturar, mas também era a única que sabia as letras. Ainda me lembro de L'oiseaux et l'enfant, acho que é assim que se escreve, de Marie Myriam, que ganhou um festival da eurovisão e que eu sabia na ponta da língua, entre muitas outras.
Vestia o vestido de noiva da minha mãe, que andava por lá a rebolar, o meu primo fazia de conta que tocava viola, a irmã dele acompanhava no coro e pronto, tínhamos a família entretida durante o serão.
E sabem o melhor? Éramos pagos. O meu avô dava o exemplo e puxava da carteira para dar tipo 5 escudos a cada um, devem ser para aí dois cêntimos e claro, o resto da família tinha que participar.
No fim do verão se não tívessemos o péssimo hábito de ir à aldeia à tasca do Sr. João, no Castelo comprar rebuçados de osso  estávamos ricos. Nunca ficámos, claro. Os gelados, os rebuçados, as batatas fritas e outros afins eram demasiado apelativos para nós.
Havia tão poucos carros que mesmo miúdos escapavamos sozinhos para a aldeia para ir às compras. Sem medos, toda a gente sabia que éramos netos do Ti Zé Álvaro e pelo menos os meus primos que passavam lá mais tempo conheciam toda a gente. Eu era a esquisita que ia de Lisboa. Enfim...
Das primeiras recordações que tenho da casa do meu avô está a morte da minha avó Cecília. Eu tinha quatro anos e lembro-me que fui com a minha mãe e o meu padrinho de comboio e ainda chegámos a tempo de ver a avó Cecília viva.
A avó estava paraplégica já há muito tempo, nunca consegui perceber porquê, mas é uma doença que tem a ver com o reumático. Costumavam sentar-me no colo dela e ela contava-me histórias. Era muito doce a avó Cecília. Dizem que herdei dela os olhos verdes, as mãos compridas e fininhas e as unhas redondas e bonitas. São três coisas de que tenho muito orgulho, tal como a bolinha no nariz que herdei do avó Álvaro. É uma bolinha muito especial, afinal o meu avô tinha uma igual.
Quando chegámos a avó pediu para falar comigo. Queria pedir-me para tomar conta do meu padrinho que andava sempre todo partido porque se metia nas garraiadas e já tinha idade para ter juízo.
Ainda me lembro: Filha, toma conta do teu padrinho, não o deixes mais meter-se nas touradas. Não te esqueças.
Não me esqueci avó e tomei conta, ele nunca mais entrou numa tourada, excepto para ajudar um amigo, colhido por um touro. Eu prometi e cumpri. Era incapaz de me esquecer do teu pedido, como fui incapaz de me esquecer de ti. E acredites ou não tenho saudades tuas avó. Fizeste-me a mim e a todos na família muita falta. Especialmente ao avô, mas espero que agora estejam de novo juntos.
O avô morreu quando eu tinha doze anos, por altura da Páscoa. Lembro-me de um dia muito chuvoso em que apareceu uma prima da minha mãe para nos dar a notícia. Nessa altura quase ninguém tinha telefone. Fomos de carro para o Alentejo. Chorei o caminho todo e não consegui ver o avô no caixão. Prefiro lembrá-lo sentado na pedra ao lado da casa a enrolar o seu cigarrinho e com a boina de borla pendurada.
O meu avô Zé Álvaro, que na verdade se chamava Zé António era um homem maravilhoso e lindo.
tinha uns olhos azuis, era alto e elegante e até ao fim usou sempre os seus fatinhos de coletinho e jaquetinha, muitos de seborreco, que lhe ficavam tão bem.
Quando chegávamos cá abaixo à fonte Pales olhava para cima e invariavelmente o meu avô lá estava, sentado na sua pedrinha a enrolar o seu cigarrinho.
A sua morte foi prematura e deixou um buraco gigante na família. Do meu ponto de vista nunca mais recuperámos. Eu pelo menos não recuperei.
Tinha uma verdadeira adoração pelo meu avô e ainda tenho. A saudade que a morte dele me deixou acompanhou-me desde então e já faz parte de mim. Acho que vou morrer com ela.
Só voltei a casa do meu avô depois da morte dele há dois anos, no Verão.
Os meus tios organizaram um almoço e resolveram fazê-lo lá.
Acreditem ou não estive longos minutos no carro a soluçar e a tremer sem conseguir sair. Foi horrível.
Quando finalmente consegui sair do carro e entrei em casa dei de caras com uma fotografia do meu avô e da minha avó na parede em frente à porta e desabei completamente. Nunca mais me apanham. Aquela casa era o meu avô. Sem ele prefiro ignorá-la. E eu nasci lá.
Não sou pessoa de ir ao cemitério e francamente nem sei em que data ele morreu. Nem me interessa. Lembro-me dele todos os dias, tenho saudades dele todos os dias mas de alguma forma sinto que o meu avô não me abandonou. Eu sei que é estranho, mas às vezes sinto como que uma carícia no rosto e não me perguntem porquê mas quero acreditar que seja o avô Álvaro.
Era um homem bom, muito bom, amigo do seu amigo, dos filhos, dos netos e de um copinho...
"Filhas, já venho bêbado", dizia às veze ao fim da tarde quando chegava a casa. E era dia de histórias e canções. O avô contava coisas da sua infância e cantáva-nos canções do tempo dele. "Sete peixinhos, sete peixinhos, fui eu que os vi a nadar...".
Obrigada avô, por teres feito parte tão integrante e forte da minha vida. Por teres sido e continuares a ser um modelo.
Amo-te muito!

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